back to top

Pode comer tranquilo. Sua comida não está envenenada

O mito da “comida envenenada”, propagado vez ou outra por algum cientista do Projac ou influencer metido a toxicologista, por mais um ano vem caindo por terra. Em dezembro de 2019, foi divulgado o relatório mais recente do PARA, o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos. Um belíssimo trabalho coordenado pela ANVISA, realizado desde 2001, que avalia a qualidade dos alimentos de origem vegetal que chegam à mesa das famílias brasileiras. Posto de outra forma, é ele que indica – pautado em uma sólida base científica, alinhado com padrões internacionais – se tem ou não veneno na sua comida.

Apesar de público e com notável evolução na didática de apresentação, com versão ilustrada e resumida, a abrangência da divulgação dos resultados é tímida. Comparativamente a um post de um famoso, pode-se dizer ridícula. Em rede nacional, o desempenho também é pífio. Talvez o único momento em que o estudo teve certo protagonismo (e adivinhe, negativo! Ah vá!) foi em 2011, quando de maneira irresponsável, sem as devidas explicações, com viés ideológico, criando mais uma falácia, então técnicos da ANVISA apontaram que cerca de um terço dos alimentos estava contaminado. Quem mais pagou a conta foi o pimentão, lembra? O campeão de agrotóxicos.

Diante deste contexto, com o intuito de colaborar para que a real informação chegue ao consumidor, decidi escrever este artigo, apresentando os últimos resultados do trabalho, inclusive, contrastando uma evolução histórica. Antes de iniciar, breves considerações:

1.      Visando trazer mais didática ao conteúdo, mudei um pouco a classificação dos resultados, afinal, o que o público geral vai entender é: pode comer ou não? Tem veneno ou não tem? Neste sentido, agrupei os indicadores em: pode comer tranquilo e é necessário melhorar. Ao longo do texto vou explicar o que está dentro das respectivas classificações bem como os motivos que me levaram a colocá-los lá.

2.      Os números apresentados foram arredondados automaticamente pelo Excel, prevalecendo apenas o número inteiro. Por isso, os resultados aqui apresentados diferem sensivelmente do trabalho oficial, de modo que, caso você queira ter ciência do número exato, basta dar uma olhadinha lá.

3.      Apesar de o estudo ser realizado desde 2001, apenas a partir de 2009 consegui identificar de forma clara e padronizada os detalhamentos da maior parte dos indicadores de resultado. Dessa forma, minha análise começa a partir daí.

4.      As periodicidades de coleta/divulgação dos resultados, em função da evolução do trabalho, não são uniformes, sendo que há uma “quebra” na série temporal – especificamente a partir de 2013 – passando de amostragens anuais para ciclos plurianuais.

5.      Em função dessa plurianualidade, os resultados mais recentes referem-se a 2017/2018, sendo o primeiro ciclo do plano 2017-2020. Portanto, os resultados são preliminares (por isso o “*” nos gráficos), contando com a presença de 14 dos 36 alimentos previstos para avaliação. Uma amostra de 4.616 unidades das 16.667 que se pretende realizar (38% a mais do quando comparado ao último levantamento, 2013/2015).

Indo direto ao ponto, a Figura 1 ilustra o principal resultado da análise: seus alimentos continuam sendo seguros, pode consumi-los com tranquilidade. Pelo menos, em cerca de 94% dos casos. Com destaque ainda para o termo “continuam”, afinal, o elevado patamar de qualidade e segurança não é novidade, com registro médio nos últimos 10 anos em torno de 96%.

Sensacionalistas ideológicos de plantão podem balbuciar que o índice piorou, caindo 3 pontos percentuais em comparação ao último levantamento, sendo válido lembrar o item 5 de minhas considerações.

Em uma análise mais detalhada da parcela do “pode comer tranquilo” (Figura 2), veremos que a participação relativa do “ausente de resíduos” foi a maior na história do levantamento (2009 não foi apresentado por falta de padronização de dados), de modo que 49% das amostras estavam livres de resíduos de agrotóxico.

Você deve estar pensando: “o Botão está louco! Ele acabou de escrever que posso comer com segurança 94% dos meus alimentos e em seguida diz que apenas 49% estão livres de resíduos. Como assim?”.

É isso aí mesmo meu amigo. Em uma analogia, nadar em uma piscina com cloro é completamente diferente de beber o produto. Existem níveis toleráveis. Alimento seguro, garantindo tranquilidade ao consumidor, não significa necessariamente estar livres de resíduos de defensivos.

O conceito de segurança não está atrelado a ausência de resíduos, mas sim da quantidade máxima de produto que você pode ingerir “sem dar algum pau”. O nome técnico disso é Limite Máximo de Resíduo (LMR) e, apesar do termo “máximo” chamar atenção, pode ficar despreocupado, pois as quantidades consideradas são mínimas, expressas, mg/kg. Eu sei, meio chato de entender. Mas para se ter uma ideia, é 0,000001 kg de agrotóxico para cada 1 kg de alimento. Traçando um paralelo, um grão de arroz pesa 0,0000273 kg, cerca de 27 vezes mais que o máximo. Ou seja, muito, muito, muito… pouco. Não pretendo entrar no detalhe, se não vou desvirtuar o propósito do artigo. Mas, caso tenha interesse, recomendo assistir o vídeo “A Calculadora do Veneno“.

Voltando para a análise dos dados, observa-se que a participação da amostra cujos registros ficaram dentro dos limites aceitáveis foi de 28% no último levantamento, o menor valor já registrado. O que foi bom, já que realizando-se uma análise em conjunto, pode-se concluir que majoritariamente houve uma migração da participação relativa de “no limite permitido” para “sem resíduos”. Ou seja, passou-se do “muito, muito, muito… pouco” para “nada”. E só não coloquei ótimo porque as inconformidades aumentaram 3% (alerta de spoiler!, isso será discutido mais pra frente), roubando, infelizmente, um pouco dessa migração.

“Pois bem Botão, 49 + 28 = 77. E os outros 17% para chegar aos 94% seguros, foram parar onde?”. Então, é aqui, meu querido leitor, que está o grande ponto de confusão. O calcanhar de Aquiles do pimentão em 2011. Esses 17%, no caso de 2017/2020, são referentes a amostras que foram identificados defensivos não autorizados para a cultura, mas cujos valores de resíduos ESTÃO DENTRO DOS LIMITES ACEITÁVEIS.

No caso do pimentão, não é que os resíduos estavam inaceitáveis, mas sim que o produto utilizado não estava autorizado para uso na cultura. O registro valia para o tomate e não para o pimentão, que pertence à mesma família vegetal, a Solanaceae e, portanto, estão sujeitas às mesmas pragas. Em uma analogia grosseira, imagine condenar um tipo de pão que utilizou de um fermento autorizado apenas para outro tipo de pão. Concorda que se fosse “para dar pau”, ia dar pau no pimentão, tomate, no pão 1, no pão 2, etc…?

Portanto, não foi uma questão de segurança e de risco à saúde, mas sim de burocracia. O problema é que no trabalho original, essa parcela é considerada “amostra insatisfatória”, apresentando inconformidade. Agora imagine essa terminologia e esses índices nas mãos erradas. É aquela história: é possível dizer um monte de mentiras falando apenas verdades. Talvez a única coisa boa que aconteceu neste escândalo do pimentão foi a chamada para agilizar o processo de registro. Não coincidentemente, a parcela do “não autorizado para a cultura” caiu de 32%, em 2011, para 17%, já em 2013/2015, patamar mantido até então. Uma proporção que deve continuar caindo com a evolução e celeridade dos registros.

“Beleza Botão, entendido! Mas e o restante? Os outros 6%? Essa é a chance que tenho de comer um vegetal e cair duro na mesa?”. NÃO! Até porque se fosse isso verdade, provavelmente já teria acontecido, considerando a quantidade de vezes que você ingere um vegetal (no caso da minha filha de 9 anos, não há chance de que isso ocorra). Então vamos entender o que compõe o valor (Figura 3), lembrando da minha consideração número 2, sobre o arredondamento dos números.

Deste montante, 2,30% referem-se à detecção de resíduos em níveis superiores ao máximo permitido, enquanto os outros 3,40% são produtos proibidos no Brasil (0,5%) e registros de mais de uma inconformidade de maneira concomitante (2,9%).

Porém, estar acima do limite, não significa necessariamente que você vá passar mal. Significa que os limites foram ultrapassados, mas não que o “pau” seja certo. É como trafegar em uma determinada rodovia em velocidade superior à permitida. Não haverá obrigatoriamente problemas, mas os riscos, sem quaisquer dúvidas, aumentam.

No caso dos defensivos agrícolas, estes riscos são medidos sob duas óticas temporais: agudo e crônico. O primeiro é se você comer grandes quantidades de um vegetal, com presença integral de resíduos acima do LMR, em um prazo de até 24 horas, enquanto o segundo leva em consideração o consumo durante a vida toda.

“Ok. E o que são grandes quantidades?”. Vamos a um exemplo. No caso do fungicida Ciproconazol (diga-se de passagem, o mesmo princípio ativo de remédios utilizados para doenças fúngicas, como micoses), uma pessoa de 90 kg precisaria comer, dentro de 24 horas, 2 kg de maçã integralmente contaminado para que haja risco agudo de exposição e “dê algum pau”.

Como você pode notar, destaquei o “integralmente”, o que exige que todo o material a ser consumido esteja com resíduo acima do máximo permitido. Toda essa minha repetibilidade chata é para lhe dizer que, na prática, de acordo com o último levantamento – 2017/2020, o risco agudo aferido para todos os resíduos detectados foi de 0,89%!

Portanto, substituindo o “integral” da continha acima pela estatística real, seria necessário a ingestão 253 kg de maçã para que o limite fosse colocado a prova e o risco agudo se tornasse uma realidade. É por isso que nunca, no mundo todo, foi diagnosticado uma sequer morte pela ingestão de resíduos de agrotóxicos em alimentos convencionais.

Por favor, preste atenção no motivo! Não estou dizendo que nunca houve morte por agrotóxico. Estou dizendo que nunca houve morte por resíduos em alimentos. Ingestão indevida e outros causos não estão contemplados na afirmação, de modo que não pretendo entrar em detalhes neste artigo. Caso queira maiores informações, acesse a plataforma do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox).

“Beleza, Botão, já entendi que é mais fácil eu morrer de tanto comer determinado alimento do que por eventuais resíduos presentes nele. Mas e o consumo ao longo da vida? Isso não vai se depositando?”. Não! O seu corpo processa e elimina eventuais resíduos. Caso contrário, pense bem, haveria imunidade a diversos problemas, afinal, seria criado ao longo da vida um repositório de ingrediente ativos no seu corpinho. Muitos deles, como já exemplificado, utilizados em remédios, o que inutilizaria alguns medicamentos. Utilizando do jargão de meu amigo Nicholas Vital: defensivos agrícolas são os remédios das plantas e não vacinas. Quem dá longevidade é vacina, não remédio. Não há residual.

Mas para que minha argumentação não fique agronomicamente romântica demais, vamos a números. Segundo resultados do último relatório, o risco com potencial crônico foi ZERO! Ou seja, nenhum, nada, qualquer, inexistente! Aliás, na história do PARA, nunca foi detectado risco crônico que não diferente de ZERO. Dessa forma, qualquer historinha que você tenha ouvido de morte, câncer, criação de três braços ou qualquer outra aberração por consumo de alimentos convencionais, submetidos a aplicação de defensivos, é mentira.

Os resultados do Brasil no que diz respeito a segurança dos alimentos continuam sendo satisfatórios. Não existem dúvidas de que ainda existem espaços para melhorias – com avanços tecnológicos e contínua capacitação e conscientização do produtor rural – afinal, 95% não é 100%. Mas não podemos negar que este é um país onde muitas vezes as narrativas não correspondem aos fatos. Ainda mais quando os espectadores tendem a dar mais ouvidos a locutores sem qualquer conhecimento ou embasamento científico, que distorcem realidades e as transformam em fábulas ideológicas. Sendo assim, estimule seu senso crítico! Procure fontes confiáveis de informação e… continue comendo tranquilo, você não está sendo envenenado.

João Rosa (Botão) é professor do Pecege e idealizador do canal do Youtube Botão do Excel.

Autor (a)

Ana Rízia Caldeira
Ana Rízia Caldeira
Boa ouvinte, aprecio demais os momentos em que posso ver o mundo e conhecer as coisas pelas palavras das outras pessoas. Não por menos, entrei para o jornalismo. E além de trazer conteúdos para o Next, utilizo minhas habilidades de apuração e escuta para flertar com a mini carreira de apresentadora nos stories do MBA USP/Esalq, no quadro Você no Camarim.

Compartilhar